nas vésperas de assinalar três
meses sobre aquele dia, tudo continua envolto numa neblina espessa. muito
espessa. e por mais que tente não lhe vejo o fim, pelo menos para já.
sendo unicamente racional há
duas, e apenas, duas certezas: um avião caiu no mediterrâneo e o meu pai
morreu. juntar estas duas frases numa só é uma golpada de ar gelado por todo o
meu corpo. dói para caraças e parece surreal. aliás, é mesmo surreal.
no dia-a-dia não acredito que
aconteceu, nas pequenas coisas começo a perceber que sim. há três meses que não
há telefonemas nem mensagens nem chamadas de facetime com os netos, não há
emails a perguntar como estamos e a dizer que está entre reuniões num qualquer
país do centro de áfrica.
e a maior e mais dilacerante
mágoa é o meus filhos terem perdido o que eu tenho a certeza que seria um avô
espectacular.
contámos o que aconteceu ao joão
na viagem a londres, em junho, num autocarro a meio de high kensington street,
ele ao meu colo. ficou calado, perguntou se o avô estava sozinho e se tinha
sido de comboio. respondi a ambas que não sabia porque não estava lá,
estratégia mais que debatida e combinada com a educadora e a família. e o
silêncio continuou. quase que juro que o senti suster a respiração durante uns
segundos. depois quebrámos a conversa e mudámos de assunto. até hoje não falou
nisto, nenhuma pergunta, nem mesmo quando vamos lá a casa. e de repente dei por
mim a pensar se ele se esqueceu do avô ou se por empatia comigo deixou de falar
nele. é certo que eu nuca mais falei do avô à frente dele(s), por medo e por
não saber como iria reagir se ele me perguntasse alguma coisa. mas sempre que
os vejo com roupa oferecida pelo avô ou a brincar com brinquedos oferecidos
pelo avô levo uma bofetada, parece que são florescentes e saltam mais à vista.
em conversa com a minha cunhada
sobre este assunto, ela comentou que o mais velho fala com naturalidade sobre
isto, faz perguntas, tem dúvidas pertinentes, não se esqueceu do avô. e porquê?
porque ele falam com ele sobre isso, não se acanham, não escondem que aquele
brinquedo foi o avô que deu. e, de repente, alguma coisa mudou dentro de mim. é
isso mesmo. não posso ter medo, não posso esconder que o avô existiu e que
esteve connosco em certos sítios, que nos deu presentes, que nos telefonava e
queria saber de nós. se eu não quero que eles se esqueçam do avô, tenho
obrigação de falar nele, de perpetuar a sua memória. que coisa óbvia que me
estava a escapar. prometi que da próxima vez que eles brincarem com o carro de
madeira ou lerem o livro do crocodilo vou falar-lhes do avô. posso chorar, não vou
esconder que é altamente provável que isso aconteça, ou pelo menos que se me
embargue a voz, mas este acontecimento trágico tem que começar a ganhar traços
de normalidade, aos poucos, um passo de cada vez.