terça-feira, 18 de março de 2014

partiu

estes dias de ausência estão justificados.
partiu a minha única avó, a única bisavó do joão. dois meses, dolorosos e intensos e cansativos, depois de fazer 91 anos.
91 anos. uma vida enorme, comprida. um casamento tardio (para a época), o segundo casamento do meu avô (coisa estranha para a época), com enteadas quase da idade dela. uma filha - a minha mãe, três netos, dois bisnetos e o terceiro a caminho, fora os bisnetos peludos, como ela dizia, que eram os cães da minha irmã.
com um feitio tramado, soube dar muito a nós mas também consegui ser quase ruim e maldosa, principalmente nos últimos anos. não sei se era solidão, rancor de alguma coisa. não sei se era tristeza ou se o ser humano fica mesmo assim quando começa a ver o fim da linha. 

fez vestidos para mim e para a minha irmã, manguitos, colchas e toalhas. aproveitava tudo o que era trapo, reciclagem no seu expoente máximo.
fez milhares de biscoitos, croquetes e rissóis, pastéis de massa tenra e arroz doce, que decorava com paciência e jeito, torcendo os dedos cheios de canela, com uma letra linda, à antiga.
fez muitos versos para todos nós, os últimos sempre dedicados aos bisnetos.

adorava plantas e tomava conta delas como se fossem filhos. falava e acarinhava-as como nunca vi.

viveu sozinha, num terceiro andar sem elevador, até aos 91 anos. deu-nos vários sustos e foi várias vezes parar ao hospital, tal era a vontade de ficar na sua casa e lá morrer. só queria morrer em casa, na cama dela, não acordar.

recusou-se a chamar o joão pelo nome nos primeiros tempos. este nome fez-lhe feridas eternamente abertas no coração. mas a alegria e felicidade que o meu bebé lhe deu falou mais forte e passou de 'o menino' a 'o meu joãozinho'.

foi uma ajuda imprescindível para a minha mãe, enquanto nos criava sozinha. adoptou os meus primos como netos, também. é o que dá vir de uma família com muitos irmãos (já nem tenho a certeza de quantos, mas acho que foram mais que dez).

vi-a nos hospital pela última vez faz hoje uma semana. algo me dizia que seria a última vez. apertou-me as mãos com muita força, com a firmeza da despedida. fiz-lhe festas. tentei dizer tudo o que queria e podia para a tranquilizar, sabendo que ela sabia que estaria para breve. caíram algumas lágrimas e apertou-me mais as mãos. tentou tirar a máscara para falar. queria formalizar a despedida, acho que.
quando lhe disse que me ia embora para entrar a minha mãe, ela mandou-me embora com a mão, enxotando-me, como que a dizer 'vai em paz, filha, vai andando para a vida'.

estes últimos dias passaram a correr, de tão preenchidos. em menos de 48h estava tudo tratado e as cinzas descansam agora com o meu avó. fui forte, às vezes bruta, pela minha mãe.

não sei se vou chorar mais, mas já tenho saudades dela.