terça-feira, 16 de agosto de 2016

quase três meses

nas vésperas de assinalar três meses sobre aquele dia, tudo continua envolto numa neblina espessa. muito espessa. e por mais que tente não lhe vejo o fim, pelo menos para já.

sendo unicamente racional há duas, e apenas, duas certezas: um avião caiu no mediterrâneo e o meu pai morreu. juntar estas duas frases numa só é uma golpada de ar gelado por todo o meu corpo. dói para caraças e parece surreal. aliás, é mesmo surreal.

no dia-a-dia não acredito que aconteceu, nas pequenas coisas começo a perceber que sim. há três meses que não há telefonemas nem mensagens nem chamadas de facetime com os netos, não há emails a perguntar como estamos e a dizer que está entre reuniões num qualquer país do centro de áfrica.

e a maior e mais dilacerante mágoa é o meus filhos terem perdido o que eu tenho a certeza que seria um avô espectacular.

contámos o que aconteceu ao joão na viagem a londres, em junho, num autocarro a meio de high kensington street, ele ao meu colo. ficou calado, perguntou se o avô estava sozinho e se tinha sido de comboio. respondi a ambas que não sabia porque não estava lá, estratégia mais que debatida e combinada com a educadora e a família. e o silêncio continuou. quase que juro que o senti suster a respiração durante uns segundos. depois quebrámos a conversa e mudámos de assunto. até hoje não falou nisto, nenhuma pergunta, nem mesmo quando vamos lá a casa. e de repente dei por mim a pensar se ele se esqueceu do avô ou se por empatia comigo deixou de falar nele. é certo que eu nuca mais falei do avô à frente dele(s), por medo e por não saber como iria reagir se ele me perguntasse alguma coisa. mas sempre que os vejo com roupa oferecida pelo avô ou a brincar com brinquedos oferecidos pelo avô levo uma bofetada, parece que são florescentes e saltam mais à vista.


em conversa com a minha cunhada sobre este assunto, ela comentou que o mais velho fala com naturalidade sobre isto, faz perguntas, tem dúvidas pertinentes, não se esqueceu do avô. e porquê? porque ele falam com ele sobre isso, não se acanham, não escondem que aquele brinquedo foi o avô que deu. e, de repente, alguma coisa mudou dentro de mim. é isso mesmo. não posso ter medo, não posso esconder que o avô existiu e que esteve connosco em certos sítios, que nos deu presentes, que nos telefonava e queria saber de nós. se eu não quero que eles se esqueçam do avô, tenho obrigação de falar nele, de perpetuar a sua memória. que coisa óbvia que me estava a escapar. prometi que da próxima vez que eles brincarem com o carro de madeira ou lerem o livro do crocodilo vou falar-lhes do avô. posso chorar, não vou esconder que é altamente provável que isso aconteça, ou pelo menos que se me embargue a voz, mas este acontecimento trágico tem que começar a ganhar traços de normalidade, aos poucos, um passo de cada vez.